A depressão e
a dor crônica muitas vezes ocorrem juntas,
mas há mais nessa relação do que apenas
condição de comorbidade (1). Pesquisadores
descobriram que existem mecanismos neurais
integrados tanto na dor quanto na depressão.
Regiões cerebrais que processam sensações
físicas, como o córtex somatossensorial,
interagem com áreas que regulam emoções e o
estresse, como a amígdala e o giro cingulado
anterior (2). Além disso, neurotransmissores
como a serotonina e a norepinefrina estão
envolvidos tanto na dor quanto nos
transtornos de ansiedade e depressão (1).
Essa sobreposição neurobiológica é a razão
pela qual cientistas estão explorando o
potencial de derivados de opioides, que são
tradicionalmente utilizados como
analgésicos, como agonistas de receptores
mu-opioide (MOR) ou delta-opioide (DOR), e
antagonistas do receptor kappa-opioide (KOR),
para o tratamento da depressão.
Nos últimos
anos, a pesquisa sobre o papel dos
receptores opioides na terapia
antidepressiva tem ganhado destaque, com
crescente interesse em torno do potencial
dos opioides nesse tratamento (3). A base
racional para essa abordagem reside na alta
expressão de peptídeos opioides endógenos e
seus receptores no sistema límbico,
responsável pela regulação das emoções,
motivação e recompensa (4). Estudos clínicos
e experimentais indicam que os agonistas MOR
produzem euforia e ajudam no enfrentamento
do estresse, enquanto os agonistas KOR
causam disforia e respostas de estresse
negativas. Por outro lado, os agonistas DOR
são conhecidos por reduzir a ansiedade e
promover melhora no estado emocional (5).
Essas descobertas sugerem que a modulação
seletiva desses receptores pode oferecer
novas vias terapêuticas para a depressão,
especialmente em casos resistentes aos
tratamentos convencionais.
Um dos alvos
estudados são os KOR, devido ao papel do
sistema dinorfina/KOR nos mecanismos de
disforia e estresse, que são sintomas de
depressão. Acredita-se que a modulação do
sistema dinorfina/KOR possa aliviar esses
sintomas ajustando o equilíbrio dos opioides
endógenos (6-8). Já existem estudos
clínicos, em fases avançadas, com
antagonistas dos receptores kappa-opioides,
como por exemplo, Navacaprant e Aticaprant,
sendo utilizados no tratamento de depressão
refratária. Esses medicamentos demonstraram,
até o momento, uma boa resposta clínica
nesses pacientes, principalmente na melhora
da anedonia, que é a incapacidade de sentir
prazer em atividades que normalmente seriam
prazerosas (9,10). Outro exemplo de
antagonista KOR que vem sendo estudado para
o tratamento da depressão é a buprenorfina,
um opioide sintetizado inicialmente para o
tratamento de dor aguda. A buprenorfina, que
também é um agonista parcial MOR e
antagonista DOR, apresenta potencial
terapêutico contra depressão refratária,
tanto administrada sozinha quanto em
combinação, como evidenciado por estudos
clínicos (11). A buprenorfina tem vantagens
como eficácia em baixas doses, perfil de
segurança estabelecido, risco limitado de
dependência, baixo risco de supressão
respiratória e farmacocinética não
influenciada por disfunção renal (12).
Agonistas dos
DOR também estão sendo amplamente estudados
devido à sua capacidade de modular a
reatividade ao estresse e promover melhorias
no estado emocional geral (13). Substâncias
como SNC80 e KNT-127 têm demonstrado
potencial na redução de comportamentos
depressivos e ansiosos em modelos animais,
regulando as vias de recompensa e prazer no
cérebro (14,15). No entanto, uma limitação
significativa dos agonistas DOR é a
capacidade dessas substâncias de induzir
convulsões (12), um efeito observado em
pesquisas com SNC80 (16,17). Por outro lado,
alguns agonistas dos DOR, como o KNT-127
reduzem comportamentos depressivos em
modelos experimentais sem causar convulsões
(18,15). Da mesma forma, o AZD-2327, que
passou por fases iniciais de estudos
clínicos, mostrou atividade antidepressiva e
ansiolítica sem causar efeitos adversos
graves (19). Apesar dos resultados
promissores, são necessárias mais pesquisas
para confirmar a segurança e eficácia desses
tratamentos em humanos a longo prazo.
A modulação
dos MOR também tem sido objeto de estudo
devido ao seu potencial terapêutico. O
agonista MOR ALKS 5461, que consiste em uma
combinação de buprenorfina e samidorfano,
foi avaliado em estudos clínicos avançados e
aliviou sintomas depressivos em pacientes
com depressão resistente ao tratamento. Além
disso, apresentou mínima evidência de abuso
e nenhuma evidência de dependência ou
abstinência de opioides (20). Outro agonista
MOR estudado é a metadona, utilizada na
clínica para reduzir os sintomas de
abstinência e a compulsão em pessoas
dependentes de opioides. A metadona também
mostrou capacidade de reduzir sintomas
depressivos em pacientes que já a utilizavam
para o tratamento para dependência (21). Por
conta dessa evidência promissora,
pesquisadores separaram o isômero S da
metadona e realizaram estudos com a
substância isolada. Neste estudo, foi
observado melhorias nos sintomas depressivos
em participantes, sem a ocorrência de
eventos adversos graves, nem efeitos
dissociativos ou sintomas de abstinência
(22).
A modulação
dos sistemas opioides apresenta uma nova
fronteira promissora no tratamento da
depressão, especialmente em casos de
resistência aos tratamentos convencionais.
Ao explorar a modulação seletiva dos
receptores mu, delta e kappa-opioides,
existe o potencial para desenvolver terapias
inovadoras que abordem a depressão de
maneira mais eficaz e específica. Por outro
lado, os riscos de dependência associados ao
uso prolongado de opioides são ameaças reais
à saúde pública, como evidenciado pelo
crescente número de mortes por overdose de
opioides nos Estados Unidos. A chamada
“epidemia dos opioides”, que se refere ao
uso excessivo e dependência de opioides, se
tornou a crise de saúde pública mais
importante dos Estados Unidos. No total,
mais de 100 mil pessoas nos EUA morrem por
ano por causa do uso excessivo de drogas,
sendo que mais de 75% dessas mortes são
associadas a algum tipo de opioide. Diante
desse cenário, o uso de opioides para o
tratamento da depressão, ainda requer
estudos cuidadosos de farmacovigilância para
monitorar a segurança desses tratamentos a
longo prazo. Além disso, a implementação
futura dessas novas terapias, após ter sido
devidamente comprovada sua eficácia e
segurança, deverá ser feita de forma
integrada, combinando tratamentos
farmacológicos com intervenções
psicossociais e comportamentais, de modo a
otimizar os efeitos terapêuticos e reduzir
os riscos.
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* Aluna de
doutorado - UFBA