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Editorial do mês

 

 

Opioides para o tratamento da depressão: uma nova esperança ou um caminho perigoso?
Letícia Santos Almeida *

 

A depressão e a dor crônica muitas vezes ocorrem juntas, mas há mais nessa relação do que apenas condição de comorbidade (1). Pesquisadores descobriram que existem mecanismos neurais integrados tanto na dor quanto na depressão. Regiões cerebrais que processam sensações físicas, como o córtex somatossensorial, interagem com áreas que regulam emoções e o estresse, como a amígdala e o giro cingulado anterior (2). Além disso, neurotransmissores como a serotonina e a norepinefrina estão envolvidos tanto na dor quanto nos transtornos de ansiedade e depressão (1). Essa sobreposição neurobiológica é a razão pela qual cientistas estão explorando o potencial de derivados de opioides, que são tradicionalmente utilizados como analgésicos, como agonistas de receptores mu-opioide (MOR) ou delta-opioide (DOR), e antagonistas do receptor kappa-opioide (KOR), para o tratamento da depressão.

 

Nos últimos anos, a pesquisa sobre o papel dos receptores opioides na terapia antidepressiva tem ganhado destaque, com crescente interesse em torno do potencial dos opioides nesse tratamento (3). A base racional para essa abordagem reside na alta expressão de peptídeos opioides endógenos e seus receptores no sistema límbico, responsável pela regulação das emoções, motivação e recompensa (4). Estudos clínicos e experimentais indicam que os agonistas MOR produzem euforia e ajudam no enfrentamento do estresse, enquanto os agonistas KOR causam disforia e respostas de estresse negativas. Por outro lado, os agonistas DOR são conhecidos por reduzir a ansiedade e promover melhora no estado emocional (5). Essas descobertas sugerem que a modulação seletiva desses receptores pode oferecer novas vias terapêuticas para a depressão, especialmente em casos resistentes aos tratamentos convencionais.

 

Um dos alvos estudados são os KOR, devido ao papel do sistema dinorfina/KOR nos mecanismos de disforia e estresse, que são sintomas de depressão. Acredita-se que a modulação do sistema dinorfina/KOR possa aliviar esses sintomas ajustando o equilíbrio dos opioides endógenos (6-8). Já existem estudos clínicos, em fases avançadas, com antagonistas dos receptores kappa-opioides, como por exemplo, Navacaprant e Aticaprant, sendo utilizados no tratamento de depressão refratária. Esses medicamentos demonstraram, até o momento, uma boa resposta clínica nesses pacientes, principalmente na melhora da anedonia, que é a incapacidade de sentir prazer em atividades que normalmente seriam prazerosas (9,10). Outro exemplo de antagonista KOR que vem sendo estudado para o tratamento da depressão é a buprenorfina, um opioide sintetizado inicialmente para o tratamento de dor aguda. A buprenorfina, que também é um agonista parcial MOR e antagonista DOR, apresenta potencial terapêutico contra depressão refratária, tanto administrada sozinha quanto em combinação, como evidenciado por estudos clínicos (11). A buprenorfina tem vantagens como eficácia em baixas doses, perfil de segurança estabelecido, risco limitado de dependência, baixo risco de supressão respiratória e farmacocinética não influenciada por disfunção renal (12).

 

Agonistas dos DOR também estão sendo amplamente estudados devido à sua capacidade de modular a reatividade ao estresse e promover melhorias no estado emocional geral (13). Substâncias como SNC80 e KNT-127 têm demonstrado potencial na redução de comportamentos depressivos e ansiosos em modelos animais, regulando as vias de recompensa e prazer no cérebro (14,15). No entanto, uma limitação significativa dos agonistas DOR é a capacidade dessas substâncias de induzir convulsões (12), um efeito observado em pesquisas com SNC80 (16,17). Por outro lado, alguns agonistas dos DOR, como o KNT-127 reduzem comportamentos depressivos em modelos experimentais sem causar convulsões (18,15). Da mesma forma, o AZD-2327, que passou por fases iniciais de estudos clínicos, mostrou atividade antidepressiva e ansiolítica sem causar efeitos adversos graves (19). Apesar dos resultados promissores, são necessárias mais pesquisas para confirmar a segurança e eficácia desses tratamentos em humanos a longo prazo.

 

A modulação dos MOR também tem sido objeto de estudo devido ao seu potencial terapêutico. O agonista MOR ALKS 5461, que consiste em uma combinação de buprenorfina e samidorfano, foi avaliado em estudos clínicos avançados e aliviou sintomas depressivos em pacientes com depressão resistente ao tratamento. Além disso, apresentou mínima evidência de abuso e nenhuma evidência de dependência ou abstinência de opioides (20). Outro agonista MOR estudado é a metadona, utilizada na clínica para reduzir os sintomas de abstinência e a compulsão em pessoas dependentes de opioides. A metadona também mostrou capacidade de reduzir sintomas depressivos em pacientes que já a utilizavam para o tratamento para dependência (21). Por conta dessa evidência promissora, pesquisadores separaram o isômero S da metadona e realizaram estudos com a substância isolada. Neste estudo, foi observado melhorias nos sintomas depressivos em participantes, sem a ocorrência de eventos adversos graves, nem efeitos dissociativos ou sintomas de abstinência (22).

 

A modulação dos sistemas opioides apresenta uma nova fronteira promissora no tratamento da depressão, especialmente em casos de resistência aos tratamentos convencionais. Ao explorar a modulação seletiva dos receptores mu, delta e kappa-opioides, existe o potencial para desenvolver terapias inovadoras que abordem a depressão de maneira mais eficaz e específica. Por outro lado, os riscos de dependência associados ao uso prolongado de opioides são ameaças reais à saúde pública, como evidenciado pelo crescente número de mortes por overdose de opioides nos Estados Unidos. A chamada “epidemia dos opioides”, que se refere ao uso excessivo e dependência de opioides, se tornou a crise de saúde pública mais importante dos Estados Unidos. No total, mais de 100 mil pessoas nos EUA morrem por ano por causa do uso excessivo de drogas, sendo que mais de 75% dessas mortes são associadas a algum tipo de opioide. Diante desse cenário, o uso de opioides para o tratamento da depressão, ainda requer estudos cuidadosos de farmacovigilância para monitorar a segurança desses tratamentos a longo prazo. Além disso, a implementação futura dessas novas terapias, após ter sido devidamente comprovada sua eficácia e segurança, deverá ser feita de forma integrada, combinando tratamentos farmacológicos com intervenções psicossociais e comportamentais, de modo a otimizar os efeitos terapêuticos e reduzir os riscos.

 

Referências:

[1] BAIR, M. J. et al. Depression and Pain Comorbidity: A Literature Review. Archives of Internal Medicine, v. 163, n. 20, p. 2433, 10 nov. 2003.

[2] ETKIN, A.; EGNER, T.; KALISCH, R. Emotional processing in anterior cingulate and medial prefrontal cortex. Trends in Cognitive Sciences, v. 15, n. 2, p. 85–93, fev. 2011.

[3] QIU, Y.; WANG, Y.-J. Editorial: Opioids and opioid receptors in pain, addiction, and mood disorders. Frontiers in Psychiatry, v. 15, p. 1382894, 13 mar. 2024.

[4] NEUGEBAUER, V. et al. Pain-related cortico-limbic plasticity and opioid signaling. Neuropharmacology, v. 231, p. 109510, jun. 2023.

[5] VALENTINO, R. J.; VOLKOW, N. D. Untangling the complexity of opioid receptor function. Neuropsychopharmacology: Official Publication of the American College of Neuropsychopharmacology, v. 43, n. 13, p. 2514–2520, dez. 2018.

[6] LAND, B. B. et al. The Dysphoric Component of Stress Is Encoded by Activation of the Dynorphin κ-Opioid System. The Journal of Neuroscience, v. 28, n. 2, p. 407–414, 9 jan. 2008.

[7] DONAHUE, R. J. et al. Effects of acute and chronic social defeat stress are differentially mediated by the dynorphin/kappa-opioid receptor system. Behavioural Pharmacology, v. 26, n. 7, p. 654–663, out. 2015.

[8] BROWNE, C. A.; WULF, H.; LUCKI, I. Kappa Opioid Receptors in the Pathology and Treatment of Major Depressive Disorder. Em: LIU-CHEN, L.-Y.; INAN, S. (Eds.). The Kappa Opioid Receptor. Handbook of Experimental Pharmacology. Cham: Springer International Publishing, 2021. v. 271p. 493–524.

[9] WONG, S. et al. Preclinical and clinical efficacy of kappa opioid receptor antagonists for depression: A systematic review. Journal of Affective Disorders, v. 362, p. 816–827, out. 2024.

[10] SCHMIDT, M. E. et al. Efficacy and safety of aticaprant, a kappa receptor antagonist, adjunctive to oral SSRI/SNRI antidepressant in major depressive disorder: results of a phase 2 randomized, double-blind, placebo-controlled study. Neuropsychopharmacology, v. 49, n. 9, p. 1437–1447, ago. 2024.

[11] BHIVANDKAR, S. et al. Therapeutic Potential of Buprenorphine in Depression: A Meta-Analysis of Current Evidence. Journal of Clinical Medicine Research, v. 16, n. 2–3, p. 46–55, mar. 2024.

[12] KARP, J. F. et al. Safety, Tolerability, and Clinical Effect of Low-Dose Buprenorphine for Treatment-Resistant Depression in Midlife and Older Adults. The Journal of Clinical Psychiatry, v. 75, n. 08, p. e785–e793, 26 ago. 2014.

[13] GENDRON, L. et al. Molecular Pharmacology of δ -Opioid Receptors. Pharmacological Reviews, v. 68, n. 3, p. 631–700, jul. 2016.

[14] WU, S. et al. Up-regulation of BDNF/TrkB signaling by δ opioid receptor agonist SNC80 modulates depressive-like behaviors in chronic restraint-stressed mice. European Journal of Pharmacology, v. 942, p. 175532, mar. 2023.

[15] YOSHIOKA, T. et al. KNT-127, a selective delta opioid receptor agonist, shows beneficial effects in the hippocampal dentate gyrus of a chronic vicarious social defeat stress mouse model. Neuropharmacology, v. 232, p. 109511, jul. 2023.

[16] JUTKIEWICZ, E. M. et al. The Convulsive and Electroencephalographic Changes Produced by Nonpeptidic δ-Opioid Agonists in Rats: Comparison with Pentylenetetrazol. Journal of Pharmacology and Experimental Therapeutics, v. 317, n. 3, p. 1337–1348, jun. 2006.

[17] DANIELSSON, I. et al. Electroencephalographic and convulsant effects of the delta opioid agonist SNC80 in rhesus monkeys. Pharmacology Biochemistry and Behavior, v. 85, n. 2, p. 428–434, out. 2006.

[18] KAWAMINAMI, A. et al. The delta opioid receptor agonist KNT-127 relieves innate anxiety-like behavior in mice by suppressing transmission from the prelimbic cortex to basolateral amygdala. Neuropsychopharmacology Reports, v. 44, n. 1, p. 256–261, mar. 2024.

[19] RICHARDS, E. M. et al. A randomized, placebo-controlled pilot trial of the delta opioid receptor agonist AZD2327 in anxious depression. Psychopharmacology, v. 233, n. 6, p. 1119–1130, mar. 2016.

[20] FAVA, M. et al. Opioid system modulation with buprenorphine/samidorphan combination for major depressive disorder: two randomized controlled studies. Molecular Psychiatry, v. 25, n. 7, p. 1580–1591, jul. 2020.

[21] MOHAMMADI, M. et al. The effect of methadone on depression among addicts: a systematic review and meta-analysis. Health and Quality of Life Outcomes, v. 18, n. 1, p. 373, dez. 2020.

[22] FAVA, M. et al. Efficacy and Safety of Esmethadone (REL-1017) in Patients With Major Depressive Disorder and Inadequate Response to Standard Antidepressants: A Phase 3 Randomized Controlled Trial. The Journal of Clinical Psychiatry, v. 85, n. 3, 17 jun. 2024.


* Aluna de doutorado - UFBA