A Cannabis
sativa, comumente conhecida como cannabis, é
uma planta utilizada há milênios devido aos
seus efeitos psicoativos e às suas
propriedades terapêuticas, como as
antieméticas, tranquilizantes e analgésicas.
A origem e uso dessa planta se entrelaça com
o surgimento e a evolução de diversas
civilizações. O primeiro registro oficial do
uso da cannabis é descrito pela farmacopeia
mais antiga do mundo, a pen-ts'ao ching, por
volta dos anos 2700 a.C., na China. Nesse
documento, as indicações para o uso da
planta incluíam dores, constipação
intestinal, distúrbios do aparelho
reprodutor feminino, malária e alívio de
sintomas psiquiátricos [1]. A partir de
então, ela começou a ser disseminada para
outros países da Ásia, e alcançou,
posteriormente, o continente africano, o
Oriente Médio, a Europa e, mais tarde, a
América.
No Brasil, a
cannabis foi introduzida no século XVI com a
chegada dos colonizadores e dos
escravizados. No século XVIII, o cultivo e a
produção do cânhamo, uma variedade da C.
sativa com baixo teor de
Δ-9-tetrahidrocanabinol (THC), foram
incentivados pela Coroa portuguesa para
utilização como matéria-prima na confecção
de cordas e velas de barcos e para a
fabricação de produtos industrializados.
Entretanto o uso não medicinal da cannabis
com teores significativos de THC, substância
responsável por seus efeitos psicoativos, se
disseminou entre os negros escravizados e os
indígenas, que passaram a cultivá-la para
uso próprio visando os efeitos psicoativos
da planta. A utilização da cannabis por
esses grupos passou então a ser criticada
pela população mais rica, refletindo o
preconceito presente na época. Em 1924, a
repressão ao uso da cannabis ganhou força
globalmente após a II Conferência
Internacional do Ópio, que condenou a
utilização terapêutica e recreativa do ópio
e da cannabis. Em 1938 o Decreto-Lei nº 891
do Governo Federal proibiu o plantio,
cultura, colheita e exploração da planta em
todo território nacional, com penalizações
instituídas pela Lei nº 6.368 de 1976 [2,3].
As restrições
legais e sociais à cannabis ao redor do
mundo, limitaram os estudos sobre suas
propriedades medicinais, que voltaram ao
cenário científico no final do século XX,
com a descoberta do sistema canabinoide
endógeno. Essa descoberta foi acompanhada de
diversos estudos em animais e seres humanos
que aumentaram as evidências científicas da
eficácia da C. sativa e seus compostos
bioativos no tratamento de condições como
epilepsia e dor crônica. Os principais
componentes ativos da cannabis que têm sido
investigados por exercerem efeitos
terapêuticos são o THC e o canabidiol (CBD).
O THC é o principal composto psicoativo da
planta, responsável pelos efeitos de
euforia, mas também possui propriedades
analgésicas, anti-inflamatórias e relaxantes
musculares. Por outro lado, o CBD é
amplamente reconhecido por suas propriedades
ansiolíticas, anticonvulsivantes,
antipsicóticas e analgésicas.
Os efeitos
terapêuticos da cannabis e seus componentes
têm sido demonstrados em muitos estudos
clínicos. Uma revisão sistemática publicada
em 2015 analisou 28 estudos clínicos
randomizados controlados avaliando o uso de
cannabis para o tratamento da dor crônica. A
análise em conjunto desses estudos permitiu
concluir que os canabinoides, especialmente
o THC e o CBD, têm eficácia moderada na
redução da dor crônica em pacientes com
esclerose múltipla, dor neuropática de
diversas origens e dor oncológica [4]. Uma
revisão de literatura realizada em 2020,
analisou os resultados de estudos em modelos
experimentais em animais e de estudos
clínicos. Essa revisão evidenciou que o CBD
tem efeitos analgésicos e anti-inflamatórios
em modelos experimentais, e em pacientes com
dor neuropática periférica, dor crônica e
artrite reumatoide, melhorando a qualidade
de vida desses indivíduos [5]. Além disso,
um estudo clínico publicado em 2020 revelou
que o uso do canabidiol em pacientes com dor
crônica reduz o uso de opioides e melhora a
dor e a qualidade do sono [6]. Há evidências
de que o THC também pode aliviar a dor e a
fadiga, e contribuir positivamente para o
bem-estar de pacientes com fibromialgia [7].
Nos últimos 10
anos, diante das evidências crescentes dos
benefícios terapêuticos da Cannabis e seus
componentes, pacientes com condições
debilitantes e refratárias, como dores
neuropáticas crônicas, epilepsia e câncer
[8], passaram a buscar alternativas
terapêuticas à base de cannabis, e a
regulação do acesso a essa planta para fins
medicinais tornou-se alvo de discussão
mundialmente. Em 2015, o debate sobre a
cannabis medicinal ganhou maior enfoque no
país, quando a Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (ANVISA) reclassificou
o CBD, uma das substâncias com maior
potencial terapêutico presente na cannabis,
como substância controlada, permitindo assim
a sua importação mediante prescrição médica,
com base na Resolução de Diretoria Colegiada
(RDC) n° 03/2015 [9]. Após dois anos, o
primeiro medicamento à base de cannabis foi
registrado no Brasil, o Mevatyl® -
registrado em outros países com o nome
comercial Sativex® - um spray oral contendo
CBD e THC (1:1), indicado para o tratamento
de esclerose múltipla, aliviando sintomas
como a espasticidade e a dor [5,10].
Atualmente o Mevatyl® se mantém como o único
medicamento com ativos derivados da cannabis
regularmente registrado no Brasil, o que
pode refletir as restrições impostas pelas
políticas de controle nacional vigentes e as
exigências para registro de novos
medicamentos no país.
Em 2019 a
ANVISA aprovou a RDC 327/2019, que
regulamentou a concessão de Autorização
Sanitária para a fabricação, importação e
comercialização de produtos à base de
cannabis para fins medicinais. Essa
resolução teve como impacto direto o aumento
do acesso dos pacientes ao tratamento, uma
vez que o registro feito na categoria de
produto requer um processo mais simples e
rápido em comparação ao registro como
medicamento, o qual necessita de ensaios
clínicos mais robustos. A resolução teve o
objetivo de simplificar e padronizar o
processo para registro de produtos de
cannabis, estabelecendo padrões de
qualidade, segurança e eficácia que devem
ser seguidos pelas empresas. Os produtos
autorizados têm validade máxima de cinco
anos e devem ser prescritos por médicos
capacitados. Além disso, a prescrição de
produtos com teor de THC acima de 0,2% deve
ser feita apenas em casos de pacientes
terminais ou em situações clínicas
irreversíveis que sejam refratárias a outros
tratamentos [11]. No ano seguinte, a RDC
335/2020 definiu os critérios e
procedimentos para a importação de produto
derivado de cannabis, por pessoa física,
para uso próprio e tratamento de saúde,
mediante prescrição de profissional
legalmente habilitado, atualizada
posteriormente pela RDC 660/2022 [12,13].
Contudo, no
cenário atual, ainda ditado por essas
legislações, o custo desses produtos se
torna muito elevado para o paciente, sendo
uma das principais dificuldades enfrentadas
na obtenção do tratamento adequado.
Atualmente, os preços das soluções orais à
base de CBD e de extrato de Cannabis sativa
variam de aproximadamente R$ 200,00 (20 mg
CDB/mL) a R$ 2.500,00 (200 mg CDB/mL) [8].
Isso se deve à falta de uma política de
controle de preços estabelecido para a
categoria regulatória de produtos de
cannabis e a impossibilidade de cultivo da
planta em território nacional, limitando a
oferta e restringindo a autonomia do país.
Dada a dificuldade de acesso aos produtos,
devido a questões de regulamentação e custo,
muitos pacientes recorrem a alternativas
como redes de fornecimento informais e o
autocultivo, colocando-se em risco devido à
falta de padronização e ao controle de
qualidade inadequado.
Nesse
contexto, destaca-se o papel das associações
sem fins lucrativos, formadas por
profissionais de saúde e pacientes com
conhecimento especializado e experiência na
área. Essas associações orientam os
pacientes e facilitam o processo de
judicialização para obter autorizações
legais de uso de produtos à base de cannabis.
Isso não só permite um acesso mais seguro e
regulamentado aos medicamentos e produtos,
mas também auxilia na construção de
precedentes legais que podem influenciar
futuras políticas públicas e melhorar o
acesso ao tratamento com a cannabis
medicinal no Brasil [14,15]. Em um relatório
divulgado pela ANVISA em 2023, dos 1.713
pacientes registrados que obtiveram
autorização excepcional para uso de produtos
e medicamentos à base de cannabis, 61,7%
apresentaram idade ≤ 19 anos e a principal
causa das solicitações foi a epilepsia,
seguida pela dor crônica [5].
Diante desse
cenário percebe-se que, apesar dos avanços
recentes, o acesso ao tratamento utilizando
produtos à base de cannabis ainda é
limitado. Dentre as principais dificuldades
encontradas tem-se o alto custo dos produtos
e as barreiras regulatórias existentes. Além
disso, o preconceito e o estigma
historicamente inerentes ao uso da C. sativa,
ainda dificulta o avanço e contribui para as
lacunas das evidências científicas,
aumentando a desinformação da população e
apoiando a sua criminalização no cenário
nacional [14]. Nesse contexto, as
associações desempenham um papel crucial,
tanto na facilitação do acesso e informação
da população, quanto na luta por políticas
públicas mais justas e inclusivas. Em termos
de perspectivas futuras, é provável que com
a contínua evolução da legislação e com o
aumento das pesquisas comprovando a eficácia
e segurança do uso terapêutico da planta, a
cannabis medicinal se torne nos próximos
anos uma opção terapêutica amplamente
disponível e consolidada no país.
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* Aluna de
graduação – iniciação científica/extensão -
UFBA