O transtorno
do espectro autista (TEA), também conhecido
como autismo, é um transtorno do
neurodesenvolvimento altamente hereditário e
heterogêneo, que atraiu bastante atenção de
cientistas e médicos nos últimos anos. Seu
diagnóstico é realizado através do relato
detalhado da história de desenvolvimento da
criança, que geralmente ocorre através dos
pais, e da avaliação comportamental e
clínica do indivíduo por médicos treinados.1
Essa avaliação geralmente é realizada por um
pediatra do desenvolvimento ou por um
psiquiatra de crianças e adolescentes, que
pode solicitar exames e avaliações
neurológicas.2 Estima-se que em
todo o mundo uma a cada 100 crianças seja
autista, mas alguns estudos já encontraram
números bem maiores,3 que podem
chegar a uma proporção de 1 para 36.4,5
Embora os
autistas sejam muito diferentes entre si, é
comum eles apresentarem prejuízo nas áreas
de comunicação e interação social,
comportamentos atípicos, restritos e/ou
repetitivos e níveis variados de deficiência
intelectual.2,6,7 O autismo pode
ser acompanhado por várias condições, como
transtorno de déficit de atenção e
hiperatividade, bipolaridade, ansiedade,
esquizofrenia, distúrbios do sono,
enxaqueca, epilepsia, ansiedade, depressão,
problemas gastrointestinais, entre outras.6-8
A respeito da
enxaqueca, trata-se de uma condição
neurológica definida por uma dor de cabeça
latejante, que também pode ser acompanhada
por sensibilidade à luz, cheiros e barulhos,
náuseas e vômitos, tonturas, sensibilidade a
movimentos, além de formigamentos e
dormência no corpo.9 Essa
condição é mais comum em pessoas com menos
de 50 anos10 e duas vezes mais
frequente em mulheres do que em homens.11
Alguns fatores podem aumentar o risco de
desenvolver enxaqueca, como o uso excessivo
de analgésicos, obesidade, depressão,
estresse, distúrbios craniomandibulares,
problemas de sono, uso excessivo de cafeína,
ansiedade, jejum, alterações hormonais,
alguns alimentos como chocolate e frutas
cítricas, além de fatores genéticos.9,11,12
A associação
entre enxaqueca e autismo ainda é pouco
explorada, mas algumas pesquisas já
observaram que as duas condições
compartilham mecanismos fisiopatológicos
comuns.8 Variantes genéticas
podem contribuir para o desenvolvimento de
autismo e enxaqueca de várias maneiras. Elas
podem, por exemplo, alterar a função de
neurotransmissores, receptores ou canais
iônicos, o que pode levar a alterações na
excitabilidade neuronal, na
neuroplasticidade e na modulação da dor.
Tanto o TEA
quanto a enxaqueca podem estar ligados ao
comprometimento do processamento sensorial,
levando a reações exageradas a estímulos
externos. Além disso, ambas condições têm
sido associadas a disfunções no sistema
serotoninérgico, sugerindo uma possível
ligação neuroquímica. A serotonina é um
neurotransmissor envolvido em muitas
funções, incluindo a modulação do humor, do
comportamento, da dor e da função cerebral.
Estudos têm demonstrado que pessoas com
autismo e enxaqueca apresentam níveis
reduzidos de serotonina no cérebro.
A desregulação
serotoninérgica pode contribuir para a
relação entre autismo e enxaqueca de várias
maneiras. Por exemplo, a serotonina está
envolvida na modulação da excitabilidade
neuronal. A redução dos níveis de serotonina
pode levar a uma maior excitabilidade
neuronal e contribuir para os sintomas
comportamentais e neurológicos do autismo,
como a dificuldade de interação social e a
hipersensibilidade a estímulos ambientais.
Esse neurotransmissor também está envolvido
na modulação da dor. A redução dos níveis de
serotonina pode levar a uma maior
sensibilidade à dor, o que pode contribuir
para os sintomas da enxaqueca, como a dor de
cabeça, a náusea e os vômitos. Além disso, a
serotonina está envolvida na modulação da
função cerebral. A redução de seus níveis
pode levar a alterações na neuroplasticidade,
o que pode contribuir para a vulnerabilidade
a ambas as condições. Estudos têm
demonstrado que tratamentos que aumentam os
níveis de serotonina no cérebro podem ser
eficazes no tratamento do autismo e da
enxaqueca. Por exemplo, os antidepressivos,
que aumentam os níveis de serotonina, são
comumente usados para tratar o autismo e a
enxaqueca.
Alguns estudos
investigaram a ocorrência de enxaqueca em
autistas. Um deles realizou uma revisão do
prontuário de pacientes com TEA para
identificar os tipos de dor de cabeça
vivenciados por eles e observou que 61% dos
pacientes sofriam de enxaqueca,13
mostrando que essa condição pode ser muito
frequente nesses indivíduos. Além disso, uma
pesquisa online realizada com pais de
crianças autistas reuniu relatos dos pais
sobre comportamentos, sinais e sintomas de
seus filhos. Os pesquisadores observaram que
as crianças com TEA que apresentaram
enxaqueca, também apresentaram sintomas de
ansiedade e hiper-reatividade sensorial de
forma mais intensa que as crianças sem
enxaqueca,14 demonstrando uma
evidência de ligação entre as três condições
e possíveis mecanismos fisiopatológicos em
comum. Outro estudo de coorte investigou
comorbidades em indivíduos do Reino Unido
com TEA diagnosticados na vida adulta. Essa
pesquisa verificou que as comorbidades
neurológicas foram mais frequentes no grupo
com TEA em comparação ao grupo controle,
especialmente a enxaqueca,15
mostrando a associação entre as duas
condições. Somado a isso, um estudo
longitudinal realizado com crianças e
adolescentes de Taiwan observou que os
indivíduos autistas apresentaram um risco
significativamente maior de desenvolver
enxaqueca mais tarde na vida quando
comparados aos indivíduos sem TEA,16
demonstrando, mais uma vez, possíveis
mecanismos fisiopatológicos em comum. Esse
mesmo estudo defendeu que o diagnóstico e o
tratamento da enxaqueca devem ser integrados
aos cuidados de crianças e adolescentes com
TEA.16
Por fim, duas
revisões narrativas exploraram a relação
entre autismo e enxaqueca. Uma delas
observou que, apesar de as amostras de
alguns estudos serem pequenas, os indivíduos
estudados apresentaram uma alta taxa de
sintomas de enxaqueca.8 A outra
constatou que a dor de cabeça provavelmente
é subestimada em autistas, possivelmente
devido às dificuldades de comunicação
presentes nesses indivíduos, podendo afetar
sua capacidade de relatar dores.17
Esses resultados mais uma vez confirmam que
a enxaqueca pode ser mais frequente em
autistas do que se imagina, além de alertar
para a carência de diagnóstico e tratamento
de enxaqueca nessa população.
Identificar,
diagnosticar e tratar dores de cabeça não é
simples para pacientes que conseguem se
comunicar verbalmente, e pode ser ainda mais
desafiador em autistas. Dessa forma, é
importante considerar as necessidades de
autistas não-verbais ou com alterações
intelectuais que podem sentir dores de
cabeça, mas não conseguem descrever os seus
sintomas.17 Outro aspecto a ser
considerado é que a dor no ser humano tem
uma dimensão emocional e social. Assim, a
expressão da dor inclui diversas
manifestações como alterações na expressão
facial, atividade verbal, postura, movimento
e comportamento. Portanto, é razoável
esperar diferenças nos relatos de dor por
indivíduos com TEA.17
Uma ferramenta
que poderia auxiliar no diagnóstico da
enxaqueca em autistas seria a aplicação de
escalas de dor apropriadas para esses
indivíduos. Algumas pesquisas descreveram
esses instrumentos para avaliar a
intensidade da dor em crianças e
adolescentes com deficiência cognitiva ou
não-comunicantes, entre eles: Lista de
Verificação de Dor em Crianças
Não-comunicantes - Revisada (NCCPC-R), Lista
de Verificação de Comportamento da Dor (CPB
- 10 item version), escala Rosto, Pernas,
Atividade, Choro e Consolabilidade -
Revisada (r-FLACC), Perfil de Dor Pediátrica
(PPP), e Escala de Classificação Numérica
Individualizada (INRS).18-20 No entanto,
nenhum estudo mostrou a aplicação dessas
ferramentas em autistas para avaliar a
enxaqueca.
Apesar de
poucos estudos investigarem a associação
entre autismo e enxaqueca, observa-se que
essas duas condições podem estar
relacionadas. Devido à dificuldade de
comunicação presente em muitos indivíduos
autistas, a enxaqueca pode não ser percebida
e consequentemente subestimada nessa
população, o que pode trazer mais prejuízos
e desconforto para essas pessoas. Dessa
forma, é importante que os pais e/ou
cuidadores observem sinais e procurem
auxílio profissional para realizar um
diagnóstico precoce e o tratamento adequado
da enxaqueca. Além disso, uma melhor
compreensão dos mecanismos fisiopatológicos
comuns entre as duas condições e a
utilização de instrumentos, como as escalas
de dor, podem melhorar a gestão clínica
desses pacientes.
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* Alunas de
mestrado - UnB - disciplina da Pós-Graduação